sábado, 20 de março de 2010

“Josué, nunca vi tamanha desgraça”



Enviado por Paulo Gonçalves

Na noite do último Natal, no centro do Recife, centenas de pessoas com andrajos faziam filas quilométricas para receber “cestas básicas” distribuídas pelos governos federal e estadual, igrejas, centros comunitários, clubes de mães...
A cena repetia, de modo concentrado, o que acontece diariamente pelas ruas centrais e adjacentes desta cidade “tomada ao mar”. A secular miséria aumenta ano após ano, decorrente da mesma prática política que Josué Apolônio de Castro denunciava há mais de 40 anos.

Médico, geógrafo, professor catedrático e autor do livro Geografia da fome, obra traduzida em 25 idiomas, o pernambucano nascido no Recife, Josué de Castro foi um dos mais importantes brasileiros do século XX, cuja vida foi dedicada a desvendar e denunciar as condições em que subsistem milhões de seres humanos, condenados a morrer de fome, vítimas da exploração de um sistema moribundo e de suas relações sociais.
Utilizando-se de instrumentais teóricos marxistas, a obra de Josué de Castro se notabilizou pelo estudo e pela denúncia das condições que produzem o flagelo da fome. Ela analisa o imperialismo e o seu desenvolvimento nos países semicolonizados ao criticar as classes dominantes e enfocar o papel da economia e a necessidade de erradicar o latifúndio e o semifeudalismo, fonte primeira das condições de vida subumanas encontradas a cada esquina do nosso país e demais nações sob o jugo colonial.
A sua denúncia do “flagelo fabricado pelos homens contra outros homens”, como diz em Geografia da fome, sintetiza o seu vigoroso trabalho, referência mundial obrigatória quando o tema é fome como consequência da ação política.

Segundo sua filha, Anna Maria de Castro, “a publicação da primeira edição da Geografia da fome, em 1946, marca o início das denúncias que pretendeu levar , aos brasileiros e ao mundo, sobre esse grave flagelo”. Anna diz que “a vida de Josué de Castro foi uma grande lição de engajamento em sua própria realidade, sua própria cultura. Ele procurou desenvolver uma ciência a partir de um fenômeno que é a manifestação do baixo padrão de vida em sua mais dura expressão: a fome, e tentou criar uma teoria explicativa para a triste realidade da negligência, da pobreza, da miséria, buscando modificar a história de seu país. É este homem que o Brasil de hoje precisa deixar de ignorar.”

Hoje, principalmente, quando os governantes do FMI/PT baseiam sua política no assistencialismo das tais comunidade solidária, bolsa-escola, cartão alimentação (cópia do food stamp distribuído pelos ianques na década de 40), bolsa família, fome zero, restaurantes a R$ 1,00, nada mais estabelecem que um grande engodo eleitoreiro para mantê-los no poder, sem nenhuma melhora nas condições de vida do povo. Trata-se de uma política social de amansamento, de domesticação que agride a dignidade humana, porque é voltada para aprofundar a submissão, a ignorância e a idiotização.
Com essas esmolas as autoridades acreditam que essa imensa massa humana não cobrará delas nada mais que uma cesta básica. Situação idêntica inspirou o poeta Zé Dantas e a Luiz Gonzaga, o rei do baião que cantou em Vozes da seca: “Uma esmola a um homem que é são ou lhe mata de vergonha ou vicia o cidadão.”

No prefácio de sua obra mais famosa, ele diz:
A lama dos mangues do Recife é povoada de seres humanos feitos de carne de caranguejo, pensando e sentindo como caranguejos. Seres anfíbios — habitantes da terra e da água —, meio homens e meio bichos, alimentados desde a infância com caldo de caranguejo, este leite de lama. Seres humanos que se faziam assim irmãos de leite dos caranguejos. Que aprendiam a engatinhar e a andar com os caranguejos da lama e que depois de terem bebido na infância este leite de lama, de se terem enlambuzado com o caldo grosso da lama dos mangues, de se terem
impregnado do seu cheiro de terra podre e de maresia, nunca mais se podiam libertar desta crosta de lama que os tornava tão parecidos com os caranguejos, seus irmãos, com as suas duras carapaças também enlambuzadas de lama.

Cedo me dei conta deste estranho mimetismo: os homens se assemelhando, em tudo, aos caranguejos, arrastando-se, agachando-se como os caranguejos para poderem sobreviver. Parados como os caranguejos na beira d’água ou caminhando para trás como caminham os caranguejos. É, por isso, que os habitantes dos mangues, depois de terem um dia saltado para dentro da vida, nesta lama pegajosa dos mangues, dificilmente conseguiram sair do ciclo do
caranguejo, a não ser saltando para a morte e, assim, se afundando para sempre dentro da lama.


Nenhum comentário:

Postar um comentário