domingo, 30 de maio de 2010

Vandana Shiva



Os “pobres”, defende Vandana Shiva, não são aqueles que “ficaram para trás”, por serem incapazes de jogar as regras do capitalismo, mas aqueles que ficaram excluídos de todo jogo e aos quais foi impedido o acesso aos próprios recursos de um sistema econômico que destrói o controle público sobre o patrimônio biológico e cultural. Estar “do lado dos últimos” (como diz o título de um recente livro seu publicado pelas edições Slow Food) não significa, portanto, dar mais a quem tem menos, mas restituir o que foi subtraído com a força de leis injustas, defender os bens comuns do assalto avançado da globalização neoliberal, impedir a exclusividade das formas de vida e de conhecimento e construir uma nova democracia ecológica. Uma democracia que defenda a biodiversidade e que reconheça o condicionamento recíproco entre sustentabilidade ecológica e justiça social.

A reportagem é de Giuliano Battiston, publicada no jornal Il Manifesto, 06-01-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Uma das questões que a senhora tende a destacar com mais insistência é a íntima conexão entre sustentabilidade ecológica e justiça social. Como explicaria essa conexão àqueles que continuam considerando que se trata de âmbitos totalmente separados e impermeáveis entre eles?

Para a maior parte dos pobres, a conexão é evidente, porque os recursos naturais e ecológicos constituem a fonte principal do seu sustento, e, quando alguém se apropria indevidamente deles, isso leva, por um lado, à insustentabilidade ecológica e, por outro, à injustiça social e econômica. Deixe-me dar dois exemplos: se a Coca-Cola extrai diariamente, com as suas instalações, milhões de litros de água com a qual uma certa comunidade muitas vezes se beneficia, ela, fazendo isso, destrói o sistema hídrico dessa comunidade e, ao mesmo tempo, causa uma nova forma de injustiça social e econômica. Ou tomemos a questão da terra: em Bengala, recentemente, o grupo Tata procurou apropriar-se da terra dos agricultores, mas a submissão aos objetivos da indústria automobilística de uma terra que oferece sustento à milhares de pessoas não só retira a fertilidade dessa terra e cria uma produtividade insustentável do ponto de vista ecológico, mas determina também uma grave injustiça social. E é justamente contra essa injustiça que os agricultores de Bengala combateram organizando-se, impedindo que a Tata construísse sobre as suas terras. São apenas dois entre numerosos exemplos que demonstram, entre outras coisas, como a sustentabilidade ecológica e a justiça social estão conectadas à paz, porque é justamente da injustiça social e do crescimento da desigualdade que o fundamentalismo tem origem.

Segundo as análises que a senhora desenvolve em “Bene comune della terra” [Bem comum da terra, em tradução livre], “a globalização econômica se configura como uma nova forma de ‘enclosure of the commons’, o cerco das terras comuns britânicas”, e se volta à privatização de cada aspecto da nossa vida, da água que bebemos à biodiversidade, do sistema educativo ao patrimônio cultural. Pode nos explicar de que modo a globalização está ligada ao cerco dos bens comuns da Inglaterra do século XVI e quais são as suas atuais manifestações?

Na Inglaterra, com os cercos dos bens comuns, apropriou-se das terras dos agricultores transformando-as em terrenos para a produção de matérias-primas destinadas ao enriquecimento da burguesia emergente e ao funcionamento da indústria têxtil. Nas últimas décadas, por meio das leis de propriedade intelectual promovidas pela WTO [Organização Mundial do Comércio] e graças às condições financeiras impostas pelo Banco Mundial com os planos de ajuste estrutural e os processos de privatização, foram incluídos nos cercos de propriedade bens de novo tipo. Aqueles aos quais voltei particularmente a minha atenção são os recursos vivos: os sistemas vivos graças aos quais o planeta se mantém vivo e que são indispensáveis para satisfazer as nossas necessidades fundamentais foram declarados propriedade intelectual, como se fossem uma criação das corporações: hoje é a própria vida como bem que é privatizada. Além disso, do momento em que os sistemas vivos são acompanhados de tipos particulares de saberes e conhecimentos, e que, portanto, sistemas específicos de conhecimento são associados a formas específicas de vida, começa-se a cercar também o saber e os bens intelectuais. Já é evidente que estamos frente a um assalto desferido contra a atmosfera assim como contra o ar que respiramos: as grandes indústrias antes cercam o ar poluindo-o e tratando-o como um objeto já morto e de sua propriedade, e depois, uma vez que a poluição alcança um nível de caos climático, pensam em torná-lo matéria de troca comercial. A possibilidade de comprar e vender cotas de emissão de poluição demonstra que todos os atores envolvidos nas discussões relativas aos protocolos de mudanças climáticas creem verdadeiramente que podem exercer direitos de propriedade sobre a atmosfera. Aquela realizada por um grupo de indústrias poluidoras é só a última e clamorosa forma de cerco dos bens comuns.

A senhora sempre foi muito crítica com relação ao reducionismo da ciência mecanicista, filha da revolução científica. Poderia nos explicar por que defende que o reducionismo não é “simplesmente um incidente epistemológico, mas a resposta às necessidades de um tipo específico de organização econômica e política” e por que acredita que a ciência moderna constitui “uma justificação ética e gnoseológica à exploração dos recursos” comuns?

São muitos os modos pelos quais a emergência da ciência mecanicista – e da filosofia reducionista que está em sua base – acabam por se integrar ao crescimento da organização econômica que definimos capitalismo, promovendo suas regras de funcionamento e favorecendo seus interesses. Sobretudo, a orientação reducionista consente que todos os limites éticos sejam removidos da utilização da natureza. No período em que essa ideologia se formava, os cientistas defendiam que as culturas fundadas sobre uma visão holística da natureza e da relação entre a natureza e o homem obstaculizavam a exploração. Por isso, foi necessário um ataque à ideia dos seres humanos como parte da natureza e a da natureza como organismo vivo: a natureza foi morta, e a terra mater, convertida em terra nullius, uma terra vazia, privada de capacidade produtiva e criativa, um mero amálgama de matérias-primas. Além disso, o reducionismo e a filosofia mecanicista permitem externalizar os danos da exploração: o reducionismo, antes, faz com que a vida possa ser explorada e destruída e depois, cortando e seccionando a realidade, faz sim com que se possa fechar os olhos frente às consequências das nossas ações. Esse mecanismo é adotado também em outros campos: os sistemas vivos são sistemas complexos, altamente diferenciados, que se auto-organizam, mas a engenharia genética considera as plantas como um mero conjunto de átomos chamados genes, que podem ser seccionados, cortados e substituídos, como peças de um Lego, sem consequências. Ora, se os agricultores indianos morrem por causa dos produtos da engenharia genética, o reducionismo permitirá negar que as causas devem ser atribuídas à tecnologia em si, atribuindo-as a outros fatores. O reducionismo, além disso, opera como uma verdadeira ideologia, porque se apresenta como a única ciência digna desse nome, sujeitando a si todos os outros sistemas de conhecimento (que são a mesma coisa, senão mais complexos), ou negando que se trate de ciência verdadeira.

A degradação da natureza, a passagem forçada da terra mater aterra nullius foi conduzido também por meio do processo que, em“Sopravvivere allo sviluppo” [Sobreviver ao desenvolvimento, em tradução livre], a senhora ilustrou introduzindo o termo de “mau-desenvolvimento”, como qual indica “um modo de conhecimento masculino”, “um modelo de desenvolvimento patriarcal”. Pode nos explicar de que modo “o ‘mau-desenvolvimento’ confina as mulheres à passividade”?

Adotei o termo “mau-desenvolvimento” para indicar um desenvolvimento disforme, um mau-funcionamento do sistema, e para traçar seus vínculos com uma abordagem patriarcal, que combina a dominação sobre as mulheres à do capital sobre a natureza e sobre os indivíduos. O “mau-desenvolvimento” confina as mulheres na passividade, sobretudo, tratando a sua consciência como se ela não existisse. Nos últimos 35 anos, trabalhei com muitíssimas mulheres e sempre estou mais convencida de que são elas as “verdadeiras especialistas”, as únicas capazes de conhecer o funcionamento de um sistema e os modos para protegê-lo, e que o mundo é, em grande parte, “produzido” pelas mulheres. Porém, o sistema de pensamento reducionista e a organização econômica capitalista excluíram ou subestimaram as contribuições das mulheres, induzindo-as a acreditar que o trabalho, fundamental, de “manter a vida” não é um verdadeiro trabalho, porque não é produtivo. Segundo esse sistema de pensamento, de fato, uma mulher que mantém a própria família não produz nada, e uma comunidade que satisfaz todas as próprias necessidades alimentares mas não vende ou não compra alimentos não produz comida e não contribui com o “crescimento” e com o “desenvolvimento”. A adoção desse critério de medida levou ao “mau-desenvolvimento” e, com isso, à destruição da natureza, à exploração do “capital natural” e, junto com a negação das necessidades fundamentais, ao crescimento da pobreza.

Segundo a sua análise, devemos abandonar a atual economia suicida e promove uma abordagem cultural que expresse “um enraizamento profundo na terra e nas especificidades do lugar em que se origine, mas também um sentimento de solidariedade por todo o gênero humano, uma consciência universal”. Alguém poderia observar que, na prática, trata-se de objetivos opostos, porque o amparo da especificidade contradiz o chamado à solidariedade universal. Como responderia a essa objeção?

Responderia que é muito simples, diria inevitável, conciliar as duas dimensões: todos nós habitamos um único planeta, e isso significa que a “terra” é a mesma, mas ao mesmo tempo cada um provém de um lugar particular, de um “terreno” específico. É uma herança da filosofia reducionista a ideia de que se façam oposições do tipo “isso ou aquilo”. Quanto a mim, minha formação na teoria quântica, que exclui a ideia de que existam elementos incompatíveis e reciprocamente alternativos em favor de uma concepção baseada na conjugação “e”, me leva a crer que se pode dispor de uma identidade profundamente local, enraizada no vale do Himalaia, onde nasci e cresci, e ao mesmo tempo completamente planetária, e que essas duas formas de identidade sejam mantidas juntas sem contradições. Os recentes atentados terroristas de Mumbai também são fruto da erosão das formas de identidade múltiplas às quais me refiro. Aqueles que são vulneráveis e “disponíveis” a ser alistados, pagos ou explorados pelos extremistas do momento para cumprir ações de terrorismo são aqueles que foram afastados à força da sua terra, que foram considerados supérfluos e “excedentes” com relação às próprias sociedades; ou aqueles que foram mobilizados e recrutados por meio da construção fictícia de identidades que se excluem umas às outras em base à oposição “ou isto ou aquilo”. Na realidade, nunca ocorre “ou isto ou aquilo”, mas sempre um “isto e aquilo”: só conseguiremos nos desvincular da herança das identidades incompatíveis cultivando a nossa responsabilidade com relação ao lugar particular de onde proviemos e junto com a consciências de que somos parte de uma humanidade comum, que compartilha o mesmo planeta.

Perfil de Vandana Shiva

Nascida em Dehra Dun, nas montanhas do Himalaia, em 1952, formada em teoria quântica, em 1982 fundou a Research Foundation for Science, Technology and Natural Resource Policye, em 1991, deu vida ao movimento Navdanya (Novas sementes), que protege a biodiversidade. Premiada em 1993 com o RightLivelihood Award, Shiva é autora de muitos livros. Entre eles,“Monoculturas da mente” (Global Editora, 2003), “Vacche sacre e mucche pazze” [Vacas sagradas e vacas loucas, em tradução livre] (DeriveApprodi 2001), “Il mondo sotto brevetto” [O mundo sob patente] (Feltrinelli 2002), “Terra madre” (Utet 2002), “Guerras por água” (Radical Livros, 2006). Os últimos livros publicados são“Dalla parte degli ultimi” [Do lado dos últimos] (Slow Food) e“India spezzata” [Índia despedaçada] (Il Saggiatore), em que lembra que o milagre econômico da “shining Índia” se refere a “5% do país” e “está construído sobre a exclusão e a exploração de 95% da Índia”.

sábado, 22 de maio de 2010

Dia da Biodiversidade e da Mata Atlântica




Brasil: Mega e diverso

Os 8,5 milhões de quilômetros quadrados do Brasil representam quase a metade da América do Sul, abrangem uma das maiores regiões tropicais costeiras do mundo, e seis biomas: florestas tropicais úmidas predominam nos biomas Amazônia e Mata Atlântica; floresta seca é a vegetação original na maioria do bioma Caatinga; savanas cobriam a maior parte do bioma Cerrado; as maiores áreas úmidas do mundo estão no bioma Pantanal; e pradarias predominam na região mais meridional do Brasil, no bioma Pampa. Em cada um desses biomas, o Brasil conta com índices recordes no número de espécies. Estima-se que mais de 20% das espécies do mundo ocorrem no Brasil.

Infelizmente, muitas das espécies nativas do Brasil estão ameaçadas pela expansão da agricultura e pastagens. Várias medidas foram tomadas para reduzir a taxa de perda de biodiversidade no país, inclusive uma expansão recorde do sistema de áreas protegidas pelo governo federal e governos estaduais, com apoio de ONGs, fundos e governos internacionais, como do governo da Alemanha. Os resultados podem ser vistos, por exemplo, na grande redução da taxa de desmatamento na Amazônia. No entanto, cerca de 190 milhões de pessoas buscam melhoria das condições socioeconômicas e o país enfrenta o desafio de promover o desenvolvimento, mantendo (e sabendo aproveitar) a imensa riqueza biológica e a riqueza associada a culturas e modos de vida tradicionais: a sociodiversidade.

As maiores taxas de desmatamento ocorrem na Amazônia e no Cerrado, onde o conflito entre desenvolvimento e conservação é mais sentido, e onde soluções criativas, que envolvem conhecimentos tradicionais e biodiversidade, são mais comuns. No entanto, a maioria dos brasileiros vive em áreas urbanas localizadas no bioma Mata Atlântica, onde restam apenas fragmentos ameaçados da floresta.

O Ano Internacional da Biodiversidade: muito a ser feito ainda

2010 é o Ano Internacional da Biodiversidade e é também o ano em que vence uma das principais metas da Convenção da Diversidade Biológica, assinada na Conferência sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio 92), de reduzir, significativamente, a extinção das espécies. A mesma meta existe no âmbito dos Objetivos do Milênio. O Brasil fez, nos últimos anos, avanços significativos quanto à conservação da natureza, mas a perda da biodiversidade continua e essa riqueza continua pouco aproveitada pelo país. Este é o ano de fazer uma avaliação sobre o sucesso das políticas de conservação, uso sustentável e geração e distribuição dos benefícios da biodiversidade, no Brasil e no mundo, e educar a sociedade sobre o valor da biodiversidade.

sábado, 8 de maio de 2010

Viva a Mãe Natureza!!!!

Gaia


Mãe Natureza é uma representação da Natureza que trata da fertilidade, dos ciclos e do cultivo simbolizados na mãe. Imagens de uma mulher representativa da mãe terra, da mãe natureza, são atemporais.Na pré-história, as deusas eram adoradas pela associação com a fertilidade, fecundidade e generosidade. Sacerdotisas dominavam determinados aspectos do Império Inca, Assíria, Babilônia, Roma, Grécia, Índia e religiões anteriores às religiões patriarcais.

História
A palavra Natureza vem do latim natura significando nascimento. Em inglês, o primeiro registro de uso, no sentido de plenitude ou totalidade dos fenômenos do mundo, foi muito tardio e é datado de 1662; entretanto natura e a personificação da Mãe Natureza, foi extremamente popular na Idade Média e pode ter as raízes traçadas a partir da Grécia Antiga. Os filósofos pré-socráticos inventaram a natureza quando abstraíram a totalidade fenomênica do mundo em um único nome e trataram como um único objeto: physis.

A hipótese Gaia, também denominada como hipótese biogeoquímica. É hipótese controversa em ecologia profunda que propõe que a biosfera e os componentes físicos da Terra (atmosfera, criosfera, hidrosfera e litosfera) são intimamente integrados de modo a formar um complexo sistema interagente que mantêm as condições climáticas e biogeoquímicas preferencialmente em homeostase.
Originalmente proposta pelo investigador britânico James E. Lovelock como hipótese de resposta da Terra, ela foi renomeada conforme sugestão de seu colega,William Golding, como Hipótese de Gaia, em referência a Deusa grega suprema da Terra – Gaia. A hipótese é frequentemente descrita como a Terra como um único organismo vivo. Lovelock e outros pesquisadores que apoiam a ideia atualmente consideram-a como uma teoria científica, não apenas uma hipótese, uma vez que ela passou pelos testes de previsão.O cientista britânico, juntamente com a bióloga estadunidense Lynn Margulis analisaram pesquisas que comparavam a atmosfera da Terra com a de outros planetas, vindo a propor que é a vida da Terra que cria as condições para a sua própria sobrevivência, e não o contrário, como as teorias tradicionais sugerem.Vista com descrédito pela comunidade científica internacional, a Teoria de Gaia encontra simpatizantes entre grupos ecológicos, místicos e alguns pesquisadores. Com o fenômeno do aquecimento global e a crise climática no mundo, a hipótese tem ganhado credibilidade entre cientistas.



domingo, 2 de maio de 2010

A fome de Marina


A FOME DE MARINA PorJosé Ribamar Bessa Freire*


Há pouco, Caetano Veloso descartou do seu horizonte eleitoral o presidente Lula da Silva, justificando: “Lula é analfabeto”. Por isso, o cantor baiano aderiu à candidatura da senadora Marina da Silva, que tem diploma universitário. Agora, vem a roqueira Rita Lee dizendo que nem assim vota em Marina para presidente, “porque ela tem cara de quem está com fome”.
Os Silva não têm saída: se correr o Caetano pega, se ficar a Rita come.
Tais declarações são espantosas, porque foram feitas não por pistoleiros truculentos, mas por dois artistas refinados, sensíveis e contestadores, cujas músicas nos embalam e nos ajudam a compreender a aventura da existência humana.
Num país dominado durante cinco séculos por bacharéis cevados, roliços e enxudiosos, eles naturalizaram o canudo de papel e a banha como requisitos indispensáveis ao exercício de governar, para o qual os Silva, por serem iletrados e subnutridos, estariam despreparados.
Caetano Veloso e Rita Lee foram levianos, deselegantes e preconceituosos. Ofenderam o povo brasileiro, que abriga, afinal, uma multidão de silvas famélicos e desescolarizados.
De um lado, reforçam a ideia burra e cartorial de que o saber só existe se for sacramentado pela escola e que tal saber é condição sine qua non para o exercício do poder. De outro, pecam querendo nos fazer acreditar que quem está com fome carece de qualidades para o exercício da representação política.
A rainha do rock, debochada, irreverente e crítica, a quem todos admiramos, dessa vez pisou na bola. Feio.“Venenosa! Êh êh êh êh êh!/ Erva venenosa, êh êh êh êh êh!/ É pior do que cobra cascavel/ O seu veneno é cruel…/ Deus do céu!/ Como ela é maldosa!”.
Nenhum dos dois - nem Caetano, nem Rita - têm tutano para entender esse Brasil profundo que os silvas representam.
A senadora Marina da Silva tem mesmo cara de quem está com fome? Ou se trata de um preconceito da roqueira, que só vê desnutrição ali onde nós vemos uma beleza frágil e sofrida de Frida Kahlo, com seu cabelo amarrado em um coque, seus vestidos longos e seu inevitável xale? Talvez Rita Lee tenha razão em ver fome na cara de Marina, mas se trata de uma fome plural, cuja geografia precisa ser delineada. Se for fome, é fome de quê?
O mapa da fome
A primeira fome de Marina é, efetivamente, fome de comida, fome que roeu sua infância de menina seringueira, quando comeu a macaxeira que o capiroto ralou. Traz em seu rosto as marcas da pobreza, de uma fome crônica que nasceu com ela na colocação de Breu Velho, dentro do Seringal Bagaço, no Acre.
Órfã da mãe ainda menina, acordava de madrugada, andava quilômetros para cortar seringa, fazia roça, remava, carregava água, pescava e até caçava. Três de seus irmãos não aguentaram e acabaram aumentando o alto índice de mortalidade infantil.
Com seus 53 quilos atuais, a segunda fome de Marina é dos alimentos que, mesmo agora, com salário de senadora, não pode usufruir: carne vermelha, frutos do mar, lactose, condimentos e uma longa lista de uma rigorosa dieta prescrita pelos médicos, em razão de doenças contraídas quando cortava seringa no meio da floresta. Aos seis anos, ela teve o sangue contaminado por mercúrio. Contraiu cinco malárias, três hepatites e uma leishmaniose.
A fome de conhecimentos é a terceira fome de Marina. Não havia escolas no seringal. Ela adquiriu os saberes da floresta através da experiência e do mundo mágico da oralidade. Quando contraiu hepatite, aos 16 anos, foi para a cidade em busca de tratamento médico e aí mitigou o apetite por novos saberes nas aulas do Mobral e no curso de Educação Integrada, onde aprendeu a ler e escrever.
Fez os supletivos de 1º e 2º graus e depois o vestibular para o Curso de História da Universidade Federal do Acre, trabalhando como empregada doméstica, lavando roupa, cozinhando, faxinando.
Fome e sede de justiça: essa é sua quarta fome. Para saciá-la, militou nas Comunidades Eclesiais de Base, na associação de moradores de seu bairro, no movimento estudantil e sindical. Junto com Chico Mendes, fundou a CUT no Acre e depois ajudou a construir o PT.
Exerceu dois mandatos de vereadora em Rio Branco, quando devolveu o dinheiro das mordomias legais, mas escandalosas, forçando os demais vereadores a fazerem o mesmo. Elegeu-se deputada estadual e depois senadora, também por dois mandatos, defendendo os índios, os trabalhadores rurais e os povos da floresta.
Quem viveu da floresta, não quer que a floresta morra. A cidadania ambiental faz parte da sua quinta fome. Ministra do Meio Ambiente, ela criou o Serviço Florestal Brasileiro e o Fundo de Desenvolvimento para gerir as florestas e estimular o manejo florestal.
Combateu, através do Ibama, as atividades predatórias. Reduziu, em três anos, o desmatamento da Amazônia de 57%, com a apreensão de um milhão de metros cúbicos de madeira, prisão de mais 700 criminosos ambientais, desmonte de mais de 1,5 mil empresas ilegais e inibição de 37 mil propriedades de grilagem.
Tudo vira bosta
Esse é o retrato das fomes de Marina da Silva que - na voz de Rita Lee - a descredencia para o exercício da presidência da República porque, no frigir dos ovos, “o ovo frito, o caviar e o cozido/ a buchada e o cabrito/ o cinzento e o colorido/ a ditadura e o oprimido/ o prometido e não cumprido/ e o programa do partido: tudo vira bosta”.
Lendo a declaração da roqueira, é o caso de devolver-lhe a letra de outra música - ‘Se Manca’ - dizendo a ela: “Nem sou Lacan/ pra te botar no divã/ e ouvir sua merda/ Se manca, neném!/ Gente mala a gente trata com desdém/ Se manca, neném/ Não vem se achando bacana/ você é babaca”.
Rita Lee é babaca? Claro que não, mas certamente cometeu uma babaquice. Numa de suas músicas - ‘Você vem’ - ela faz autocrítica antecipada, confessando: “Não entendo de política/ Juro que o Brasil não é mais chanchada/ Você vem… e faz piada”. Como ela é mutante, esperamos que faça um gesto grandioso, um pedido de desculpas dirigido ao povo brasileiro, cantando: “Desculpe o auê/ Eu não queria magoar você”.
A mesma bala do preconceito disparada contra Marina atingiu também a ministra Dilma Rousseff, em quem Rita Lee também não vota porque, “ela tem cara de professora de matemática e mete medo”. Ah, Rita Lee conseguiu o milagre de tornar a ministra Dilma menos antipática! Não usaria essa imagem, se tivesse aprendido elevar uma fração a uma potência, em Manaus, com a professora Mercedes Ponce de Leão, tão fofinha, ou com a nega Nathércia Menezes, tão altaneira.
Deixa ver se eu entendi direito: Marina não serve porque tem cara de fome. Dilma, porque mete mais medo que um exército de logaritmos, catetos, hipotenusas, senos e co-senos. Serra, todos nós sabemos, tem cara de vampiro. Sobra quem?
Se for para votar em quem tem cara de quem comeu (e gostou), vamos ressuscitar, então, Paulo Salim Maluf ou Collor de Mello, que exalam saúde por todos os dentes. Ou o Sarney, untuoso, com sua cara de ratazana bigoduda. Por que não chamar o José Roberto Arruda, dono de um apetite voraz e de cuecões multi-bolsos? Como diriam os franceses, “il péte de santé”.
O banqueiro Daniel Dantas, bem escanhoado e já desalgemado, tem cara de quem se alimenta bem. Essa é a elite bem nutrida do Brasil…
Rita Lee não se enganou: Marina tem a cara de fome do Brasil, mas isso não é motivo para deixar de votar nela, porque essa é também a cara da resistência, da luta da inteligência contra a brutalidade, do milagre da sobrevivência, o que lhe dá autoridade e a credencia para o exercício de liderança em nosso país.
Marina Silva, a cara da fome? Esse é um argumento convincente para votar nela. Se eu tinha alguma dúvida, Rita Lee me convenceu definitivamente.

(*) Professor, coordena o Programa de Estudos dos Povos Indígenas (UERJ)e pesquisa no Programa de Pós-Graduação em Memória Social (UNIRIO)